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SABIA QUE… A PRAÇA DA REPÚBLICA FICA NO ANTIGO MONTE DE GERMALDE?

SABIA QUE… A PRAÇA DA REPÚBLICA FICA NO ANTIGO MONTE DE GERMALDE?

 

Revisitamos algumas edições de O TRIPEIRO dos últimos anos, a centenária revista da Associação Comercial do Porto que é guardiã da história e do património da cidade desde 1908. Neste caso, espreitamos a edição de agosto de 2011.

 

Pode adquirir as edições mensais da revista O TRIPEIRO nos serviços do Palácio da Bolsa através dos contactos disponíveis na página de Facebook da Associação Comercial do Porto.

 

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Olhar e Ver

 

A Praça da República

 

Primitivamente, o espaço da actual Praça da República ficava “fora de portas, arriba dos Ferradores…”. Ou seja, longe da Porta do Olival, na Cordoaria, e acima dos Ferradores, que era como antigamente se chamava a actual Praça de Carlos Alberto. Era, por esses recuados tempos, um pequeno logradouro que os peregrinos que iam a caminho de Santiago de Compostela atravessavam rapidamente para fugirem aos ladrões que enxameavam aquelas paragens e os assaltavam…

 

 

A Praça da República nem sempre teve a configuração que hoje lhe conhecemos. O jardim, por exemplo, é recente. É obra do dr. Tito Fontes, ilustre clínico portuense que prestou relevantes serviços à cidade como vereador da Câmara Municipal. Foi nessa qualidade que propôs a construção do jardim em sessão municipal de 29 de Dezembro de 1908. Com a implantação da República, dois anos depois, foi dado ao jardim o nome de Teófilo Braga.

Mas uma coisa é o jardim, outra é a praça, que também teve várias designações. Primitivamente, o espaço da actual Praça da República ficava “fora de portas, arriba dos Ferradores…”. Ou seja, longe da Porta do Olival, na Cordoaria, e acima dos Ferradores, que era como antigamente se chamava a actual Praça de Carlos Alberto. Era, por esses recuados tempos, um pequeno logradouro que os peregrinos que iam a caminho de Santiago de Compostela atravessavam rapidamente para fugirem aos ladrões que enxameavam aquelas paragens e os assaltavam. Era costume os estalajadeiros dos Ferradores avisarem os peregrinos: “lá em cima, em Germalde, olho vivo”, por causa dos assaltantes…

O Monte de Germalde, também conhecido por Monte de Santo Ovidio, era aquela elevação que do Largo da Lapa sobe para a actual Rua de Antero de Quental que, em tempos idos, se chamou Rua da Rainha – em homenagem a uma rainha que por ali passou em peregrinação a S. Tiago. No topo desse monte havia um cruzeiro, o Padrão Velho de Santo Ovidio, que assinalava justamente o “caminho” de S. Tiago. Esse cruzeiro está agora no interior da capela do Senhor do Socorro, que popularmente tem o nome de capela do senhor do Olho Vivo, em memória dos tempos passados…

Voltemos à Praça da República. Chamou-se, no começo, Campo de Santo Ovídio, por causa de uma capela desta invocação que existiu, mais ou menos, no local onde hoje desemboca a Rua de Álvares Cabral. Ficava esse pequeno templo nas proximidades da quinta que foi dos Figueirôas e dos viscondes de Beire e onde viveu o conde de Resende, sogro do Eça de Queirós. A capela de Santo Ovidio fazia parte de um pequeno hospício onde viviam os frades da Ordem de Santo Agostinho Descalços, também chamados “os Grilos” por a sede da sua congregação ficar no Largo dos Grilos, em Lisboa. Em 1780 esta pequena comunidade dos Agostinhos Descalços mudou-se para o antigo colégio e igreja de S. Lourenço que fora dos padres da Companhia de Jesus (jesuítas). Daí que ainda hoje chamem a essa igreja dos “Grilos”.

Sensivelmente a meio do velho Campo de Santo Ovidio havia um poço para serventia dos peregrinos e, também, para uso de quantos por ali passassem, e eram muitos os que cruzavam aquelas paragens, a caminho de Braga. A água do poço servia, ainda, para dar de beber aos muares e cavalos que transitavam por aquelas paragens. O sítio, a fazer fé numa descrição antiga, era muito aprazível porque estava sombreado pelas copas de três frondosas árvores. Para vigiar o poço e cuidar da sua limpeza, a Câmara pagava, anualmente, pelo S. Miguel, 4$000 reis a um ferreiro.

 

Ao sabor das mudanças de regime

 

Em 1783 quem cuidava do poço era o mestre ferreiro António de Pinho, que viva na Rua de Santo Ovidio, antigo nome da actual Rua dos Mártires da Liberdade. Curiosamente, parece que era nesta artéria que viviam os ferreiros. Lá viveu, em casa devidamente assinalada com uma placa, o pai do médico Ricardo Jorge, que era daquele ofício. Entre muitos outros trabalhos que executavam, os ferreiros faziam sovelas. A rua também se chamou Rua da Sovela porque, dizia-se, tinha a configuração curva daquele instrumento de trabalho usado, normalmente, pelos sapateiros.

Aconteceu, entretanto, que aquele mestre ferreiro, António de  Pinho, ainda no ano de 1783, queixou-se de que a Câmara não lhe havia pago o que fora estipulado, nem naquele ano nem no anterior. E a edilidade tomou uma resolução: pagou o que devia, mas por proposta do Procurador da Cidade foi aquela despesa abolida dos encargos camarários por “supérflua”.  Alegou o procurador que, se até ali a água do poço foi necessária para quem passava por aqueles sítios, a partir dessa altura deixava de ser útil porque um pouco mais acima, “debaixo a igreja de Nossa Senhora da Lapa”, havia uma copiosa fonte onde os transeuntes, em particular, e público, em geral, podiam comodamente abastecer-se sempre que o desejassem.

A ampliação do largo começou a ser feita, por iniciativa da Câmara, a partir de Janeiro de 1761. Dois anos depois, a mesma edilidade enviava à rainha uma carta em que dizia, nomeadamente isto: “… sendo, como é, esta cidade do Porto a segunda do reino e uma das mais distintas da Europa, assim pela sua situação como pelo seu comércio das três províncias adjacentes à mesma, necessitava das praças públicas, tanto para melhor formosura e bom aspecto dela, como para utilidade pública e bem comum dos seus moradores…”.

As obras de ampliação só começariam, porém, dois anos mais tarde. Em 1782 ainda a câmara andava a expropriar casas e terrenos para o alargamento da praça. Os trabalhos só findaram no Natal de 1785, ficando a praça com a área que hoje tem.

Um dos primeiros edifícios que foi construído já com a praça devidamente ampliada foi o do quartel que viria a servir para aboletamento do Regimento de Infantaria 18, que era o segundo mais importante contingente militar da cidade.  Trata-se de uma das mais importantes obras mandadas fazer pelo corregedor Francisco de Almada e Mendonça, que confiou o risco e a execução da obra ao arquitecto Teodoro de Sousa Maldonado.

O Campo ou Praça de Santo Ovidio conservou esta designação até 1820. Em 23 de Dezembro deste ano, por portaria da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, saída da Revolução Liberal de 24 de Agosto de 1820, a praça passou a chamar-se Campo da Regeneração, por ter sido dali que, na manhã daquele dia 24 de Agosto de 1820, se ouviram, pela primeira vez, os gritos de vivas à Constituição e às Cortes. Em 1823 voltou a ter o nome de Campo de Santo Ovidio. Mas três anos depois, tendo sido reposta a Carta, voltou a ter o nome de campo da Regeneração. Esta fase durou pouco tempo. Só até 1828, ano em que D. Miguel restabeleceu o domínio absoluto. E o nome da praça voltou a ser de Santo Ovidio. Com a vitória do Liberalismo em 1835, o nome de Regeneração voltou a ser o do antigo logradouro que, finalmente, em 27 de Outubro de 1910, tomou o nome de Praça da república, que mantém.

 

(texto de Germano Silva, jornalista e historiador)