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José Milhazes, nas Conversas na Bolsa: “neste momento, não vejo como a Rússia se possa tornar democrática”
Foi com uma pergunta de “um milhão e meio de euros” que José Milhazes iniciou a sua presença em mais uma edição das Conversas na Bolsa, no passado dia 8 de julho. A questão colocada ao convidado pelo Presidente da Associação Comercial do Porto, Nuno Botelho, foi no sentido de prever uma possível democratização da sociedade russa, ao que o jornalista, tradutor e historiador, respondeu com a franqueza que o caracteriza: “previsões só no fim do jogo. E, neste jogo, isso é particularmente verdadeiro”.
Resgatando os 38 anos que viveu na Rússia, José Milhazes recordou que os “anos de democracia foram muitos poucos, mas muito intensos” e também “insuficientes” para afirmar que o maior país do mundo possa democratizar-se. “Gostaria que assim fosse”, transmitiu o convidado, que nasceu na Póvoa de Varzim e, em 1977, emigrou para a, então, União Soviética. No entanto, José Milhazes separou a razão da emoção, concluindo: “tenho dificuldade em ver quais serão as forças que levarão a Rússia a uma democracia. Neste momento não vejo. Uma grande parte da oposição está no estrangeiro, outra em campos de concentração”.
Numa curiosa analogia, o convidado comparou o sabor democrático ao caviar, afirmando que quem experimenta gosta, mas “quem nunca experimentou, não sabe se é bom ou mau”. “Esse é o problema dos russos”, afirmou, em sequência. O comentador retratou com contundência a realidade política russa, imersa num regime ditatorial e que silencia todos os focos de oposição. “Ainda hoje foi publicada uma sondagem que atribui uma popularidade de 80% a Vladimir Putin. Isto não é uma imagem fiel da sociedade russa”, assinalou.
Sobre o conflito na Ucrânia, Milhazes mostrou-se “muito pessimista”, não arriscando, uma vez mais, previsões: “não vemos que documento pode ser assinado para acabar com a guerra”. O único prognóstico, assumiu, é que “a guerra vai ser muito longa” e trazer “consequências funestíssimas para a Rússia”, com um atraso de “décadas no seu desenvolvimento”.
EUROPA PÓS-24 DE FEVEREIRO
Num dos pontos centrais da conversa que manteve com Nuno Botelho e com a audiência no Pátio das Nações, o convidado também não escondeu o pessimismo com que encara as consequências da guerra para a União Europeia. Usando Portugal como exemplo, Milhazes confessou estar impressionado com o facto de “ver muitos políticos portugueses fazerem de conta que não vai acontecer nada”. “Até temos reservas de cereais para um mês”, ironizou.
O jornalista e comentador de política externa considerou mesmo que “a vida dos europeus nunca mais será a mesma depois de 24 de fevereiro”. Nessa perspetiva, instou a que os políticos transmitam “verdade às pessoas” e considerou que “se queremos salvar a Europa, temos de fazer sacrifícios”. “Há quem diga que sou alarmista, mas prefiro preparar-me para o pior e esperar o melhor”, acrescentou, tendo antes revelado dúvidas sobre a evolução de um setor importante para o nosso país, como o turismo: “este ano vai ser bom, mas duvido que no próximo ano isso aconteça, com a inflação, o preço dos combustíveis e a deterioração do nível de vida das pessoas”.
O combate desigual entre as democracias e a ditadura russa exige, de acordo com o que defendeu José Milhazes, que os países europeus “se preparem”. Usando o exemplo de Churchiil que “ganhou a guerra e perdeu eleições”, o historiador e autor de Do Porto ao Gulag, questionou sobre quem, na política atual, teria a mesma coragem.
DESILUSÃO COMUNISTA
Outro tema central na intervenção de José Milhazes nas Conversas na Bolsa foi a sua relação pessoal com o comunismo. O convidado não escondeu o seu percurso político – “não é mentira nenhuma”, referiu, a propósito da sua ida para Moscovo, com 18 anos, para abraçar o ideal soviético – mas foi igualmente categórico ao referir a “desilusão gradual” com a ideologia comunista. “Quando se é jovem, acredita-se. Eu, vindo de um meio extremamente humilde, tinha um grande poder de encaixe. Depois, vais vendo coisas que não estão de acordo com aquilo esperavas”, concretizou, sobre o seu trajeto pessoal, assumindo que “as utopias são tão perfeitas, que não podem fazer bem”. Milhazes recordou diversos episódios em que contactou com cidadãos russos que conheciam a realidade portuguesa, mas que estavam impedidos de conhecer o nosso país. Ele próprio, revelou, “precisava de um visto especial para sair de Moscovo”, tendo passado o primeiro ano na Universidade Estatal a ter aulas à parte dos colegas russos.
Sobre o PCP, Milhazes foi muito crítico e acusou os militantes comunistas de se prepararem para uma “última cartada” tendo em vista evitar o “desaparecimento político”: “promover convulsões sociais, manifestações e greves”. O jornalista e historiador recordou que Putin “apoia este tipo de forças políticas para rebentar com a União Europeia”.
13 de julho 2022