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SABIA QUE… O EDIFÍCIO DA CÂMARA TEM FAMA DE TER TAPADO A IGREJA DA TRINDADE DE PROPÓSITO?
SABIA QUE… O EDIFÍCIO DA CÂMARA TEM FAMA DE TER TAPADO A IGREJA DA TRINDADE DE PROPÓSITO?
Revisitamos algumas edições de O TRIPEIRO dos últimos anos, a centenária revista da Associação Comercial do Porto que é guardiã da história e do património da cidade desde 1908. Neste caso, espreitamos a edição de OUTUBRO 2015.
Pode adquirir as edições mensais da revista O TRIPEIRO nos serviços do Palácio da Bolsa através dos contactos disponíveis na página de Facebook da Associação Comercial do Porto.
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Lendas do Porto: Trindade oculta
Há cem anos atrás, na sessão da Câmara Municipal realizada no dia 29 de novembro de 1915, foi apresentado e aprovado o projeto da abertura da “Avenida da Cidade” (atual Avenida dos Aliados). Um projeto envolto em alguma polémica e muito debatido nos meses e anos anteriores, já que da sua concretização e da construção dos novos Paços do Concelho do Porto resultaria o encobrir da monumental fachada da igreja da Trindade. A construção do edifício municipal e a escolha do seu local de implantação, ocultando aquele templo, foi de resto propositada e uma vingança em relação às autoridades eclesiásticas que se opunham à abertura da Avenida dos Aliados. Pelo menos é nisso que muitos acreditam desde meados do século XX. Mas tudo não passa de uma das lendas que, ao longo das últimas décadas, mais se enraizou entre os portuenses.
Porto, 24 de junho de 1920. Onze horas da manhã. Extremo norte da Avenida das Nações Aliadas, mais tarde rebatizada como Avenida dos Aliados.
O local encontra-se engalanado com mastros e bandeiras e uma pequena multidão aperta-se para assistir à cerimónia do lançamento da primeira pedra da construção do novo Palácio Municipal. Pela notícia de primeira página que, dois dias depois, o “Comércio do Porto” publicará, ficamos igualmente a saber que na ocasião “a banda de Infantaria 18 executou “A Portuguesa”, sendo queimados muitos foguetes, enquanto se procedia ao lançamento da pedra, sendo a colher de argamassa oferecida ao sr. Dr. Armando Marques Guedes, presidente da Comissão Executiva da Câmara Municipal, batendo com o martelo o sr. Dr. Barbosa de Castro (Presidente do Senado Municipal). Finda a cerimónia, foi lido e assinado o auto, sendo queimada uma girândola de foguetes”.
Por esta mesma notícia ficamos também a saber que, entre as individualidades presentes, e além dos dois responsáveis municipais já citados, se contavam igualmente Pedro de Castro, Governador Civil do Porto em representação do Governo da República, Aarão de Lacerda em representação da Universidade do Porto, e o Comandante da Guarda Republicana do Porto.
Mas o que a notícia não nos diz, é que para lá dos discursos inflamados e dos “Vivas!” ao Porto e à República, se podia também adivinhar no rosto destas personalidades, nomeadamente dos presidentes do Sendo Municipal e da Comissão Executiva da Câmara Municipal, um estranho sorriso. Um esgar irónico… E não era para menos. De facto, com o início da construção, naquele local, do novo edifício dos Paços do Concelho, as autoridades municipais do Porto vingavam-se da oposição que a Igreja católica vinha desenvolvendo em relação a um projeto que era muito querido aos novos senhores, republicanos, da cidade: a abertura da avenida das Nações Aliadas.
Em boa verdade a ideia de criar uma moderna, ampla e extensa avenida no coração do Porto, prolongando para norte a Praça de D. Pedro (que já fora denominada como Praça Nova e que a República rebatizará como Praça da Liberdade) arrancara ainda no tempo da monarquia, tendo tal objetivo dado origem, em 1889, a um projeto de Carlos de Pezarat que definia já muito do que se viria a concretizar no século XX, com a particularidade de sugerir que um novo edifício dos Paços do Concelho se deveria localizar no lado poente dessa nova avenida.
Mas será apenas após a implantação da República, em 1910, que os responsáveis municipais se irão empenhar na concretização de tal desiderato. Em 1915, sob a direção do dinâmico vereador Elísio de Melo, a Terceira Repartição do município apresenta um novo projeto de uma avenida prolongando a Praça da Liberdade para norte. Tal prevê, por isso, a demolição do edifício que rematava desse lado a Praça: um palacete do século XVIII, a Casa Monteiro Moreira onde, desde 1816, se instalaram os Paços do Concelho.
Mas foi também em 1915 que o então presidente da Comissão Executiva da Câmara Municipal, Eduardo dos Santos Silva, se empenha na vinda ao Porto, pressionando para isso o próprio cônsul inglês na cidade, de um conceituado urbanista britânico: Barry Parker. Este começará a trabalhar no Porto em agosto desse mesmo ano e, em parte, vai valorizar e credibilizar a proposta desenvolvida pela Terceira Repartição. Introduz, no entanto, algumas transformações, nomeadamente no que respeita à largura da avenida. Uma outra inovação do projeto de Barry Parker é a sua proposta de localização, nessa artéria, de um novo edifício municipal. Facto que fora intencionalmente “esquecido” pelo projeto municipal, já que alguns dos seus responsáveis eram defensores de uma proposta do arquiteto portuense Marques da Silva que vinha pugnando pela edificação dos novos Paços do Concelho numa outra área da cidade: próximo do Carmo e da Praça de Carlos Alberto, voltados para o edifício da Universidade do Porto. Parker, contudo, avança com a proposta de os construir praticamente no mesmo local onde se encontrava o palacete Monteiro Moreira. A diferença, todavia, é que o novo edifício deveria ser vazado ao centro por um arco que garantiria a permeabilidade visual e a circulação ao longo do eixo central da avenida. Saudado por uns, criticado por outros, Parker continuará a trabalhar no seu projeto e, algumas semanas depois, apresenta uma nova proposta onde introduz ligeiras alterações, sendo que a mais importante é a sugestão de um novo local para a construção do “Palácio Municipal”: pouco antes da Praça da Trindade, no topo norte e mais alto da avenida, permitindo que o imóvel tenha um grande domínio sobre a vasta e nova artéria.
Finalmente, em sessão da Câmara Municipal realizada no dia 29 de novembro, foi apresentado e aprovado o projeto da abertura da “Avenida da Cidade” da autoria de Barry Parker. Mas a polémica mantinha-se, nomeadamente quanto à forma e localização do edifício dos Paços do Concelho, levando mesmo a Associação Industrial Portuense a informar a Câmara que não se faria representar nas cerimónias oficiais de inauguração das obras da Avenida. Uma cerimónia pública que terá lugar a um de fevereiro de 1916 e que será presidida pelo Chefe de Estado, Bernardino Machado, que inicia simbolicamente a demolição do edifício municipal instalado na Casa Monteiro Moreira e a abertura da nova avenida.
De imediato, ainda nesse ano, e não querendo perder tempo, a Câmara lança um concurso público para a concepção dos novos Paços do Concelho. Mas se é verdade que o programa do concurso determina que o local deverá ser o do projeto de Barry Parker, isto é, no topo mais alto da avenida, por outro lado permite uma grande liberdade criativa, daí resultando a apresentação de propostas que se afastarão significativamente do volume inicialmente sugerido por Parker, muito mais contido do que os projetos que se apresentarão a concurso.
Entretanto, e apesar da celeridade colocada no arranque deste processo, a verdade é que ele acabará por ser demorado, por motivos administrativos mas também por vicissitudes políticas e pelo contexto nacional e internacional, condicionado fortemente pela participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial. E embora não tenha havido propriamente um vencedor do concurso, ao qual se apresentaram apenas dois proponentes, a Câmara acabará por encarregar um dos concorrentes, o arquiteto municipal António Correia da Silva, a aprofundar e desenvolver a sua proposta. O projeto definitivo será apresentado ao Senado Municipal, e aprovado por unanimidade, em 9 de junho de 1920.
E apenas 15 dias depois, no feriado municipal de S. João, era lançada a primeira pedra. Nesta cerimónia onde, de facto, se rasga um sorriso irónico no rosto dos responsáveis municipais. Um sorriso devido não só ao contentamento pelo arranque da construção, mas também porque a edificação neste local dos Paços do Concelho representava uma vingança em relação ao bispo e às restantes autoridades católicas do Porto. Com efeito, e desde os primeiros planos, o projeto da Avenida da Cidade, entretanto rebaptizada como Avenida das Nações Aliadas na sequência da participação de Portugal na Grande Guerra, era muito mais ambicioso na sua extensão. Quase todas as propostas haviam pugnado por um prolongamento retilínio muito mais para norte. Só que todas elas esbarravam literalmente num obstáculo: a igreja da Trindade, construída ao longo do século XIX segundo projeto do arquiteto Carlos Amarante. Um templo com uma imponente fachada e cuja hipotética demolição sempre encontrou fortíssima oposição por parte do Bispo. De nada valeram os muitos pedidos e pressões por parte da Câmara. A posição da Igreja foi irredutível: não admitia o desaparecimento deste templo e do forte impacto visual que ele possuía sobre a cidade.
Vencida, mas não convencida, a Câmara acabou por ceder, definindo e aprovando como limite norte, da Avenida da Cidade, a Praça da Trindade e a sua igreja. Mas… nesse mesmo local previu a construção do edifício dos Paços do Concelho que, assim, remetia o templo da Trindade para as suas traseiras, ao mesmo tempo que o ocultava, retirando-lhe também, de um modo muito significativo, todo o domínio paisagístico que até possuíra. A vingança servia-se fria. Até hoje…
Da lenda à realidade
Nascida há poucas décadas, em meados do século XX, esta é uma lenda que se encontra, no entanto, profundamente enraizada entre os portuenses. Muitos acreditam, mesmo, que as coisas aconteceram deste modo. Mas não passa, de facto, de uma lenda…
Vamos por partes. Praticamente todos os factos, datas, documentos e personalidades descritos anteriormente são verdadeiros. A ficção lendária entra apenas no “sorriso irónico” e nos supostos motivos que o fizeram surgir na face dos responsáveis municipais: a construção do edifício dos Paços do Concelho consubstanciava uma vingança por parte das autoridades republicanas da cidade em relação à Igreja que se constituíra como um entrave a um plano muito mais ambicioso no que respeita à extensão da Avenida dos Aliados. A sua oposição à demolição da igreja da Trindade inviabilizara o projeto inicial. Mas agora, como “castigo”, a construção do edifício da Câmara Municipal, como remate da nova avenida, vinha também ocultar aquele templo.
Mas, de facto, não foi nada disso que se passou. Na realidade todos os documentos, planos e projetos acima referidos nunca previram a demolição da igreja da Trindade. As propostas para a definição e abertura da “Avenida da Cidade” sempre a balizaram entre a Praça de D. Pedro (atual Praça da Liberdade) e a da Trindade. Desde o projeto “monárquico” de 1889 até ao de Barry Parker, de 1915, passando pelo da “Terceira Repartição”. De resto, a proposta do urbanista inglês reconhecia até a importância da igreja da Trindade, pelo que, apesar de ter sido ele a defender a implantação dos Paços do Concelho no topo da avenida, propunha uma volumetria reduzida para o imóvel de forma que este não ocultasse o templo da Trindade. “Cuidado” que, efetivamente, não terá o projeto final do edifício municipal concebido por António Correia da Silva. Um projeto que, no entanto, não foi imposto de um modo autoritário pela Câmara. Bem pelo contrário. Foi apresentado e discutido com a população. Objeto, até, de um curioso plesbicito. Com efeito, consciente de que a sua edificação poderia ser polémica, o vereador Caetano de Oliveira mandou executar uma maquete do edifício, expondo-a de seguida numa vitrina do seu estabelecimento, a Camisaria Oliveira, localizada no Passeio das Cardosas. Os portuenses puderam desse modo apreciar e pronunciar-se sobre o futuro edifício da Câmara Municipal, no que foi um verdadeiro plebiscito popular, ao qual não faltaram os votos.
Por outro lado, e provando que nunca houve uma verdadeira vontade, por parte da Autarquia, em demolir a igreja da Trindade, não nos podemos esquecer do ambiente político e intelectual que então se vivia. A primeira República caracteriza-se, de facto, por um espírito anticlerical muito vincado e, por isso, se as novas autoridades republicanas da cidade quisessem efetivamente demolir aquela igreja… tê-lo-iam feito. Da mesma forma que, em 1916, na sequência da demolição dos antigos Paços do Concelho, não tiveram qualquer problema em “exigir” ao bispo da cidade que abandonasse o seu “Palácio Episcopal” para nele instalarem a Câmara Municipal até à conclusão do novo edifício.
Pode, de resto, ter sido este ambiente anticlerical da Primeira Republica, associado ao facto, indesmentível, dos novos Paços do Concelho terem remetido para as suas traseiras e para uma posição secundária a igreja da Trindade, a estar na génese desta explicação lendária para o encobrir da fachada daquele templo. Por outro lado, também o longo tempo que demorou a edificar o imóvel (os serviços municipais só aí se instalariam em 1957!) terá contribuído para que alguns mitos sobre a sua concepção e construção fossem crescendo. E a verdade é que a lenda continua…
Texto de Joel Cleto, arqueólogo