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SABIA QUE… A MORTE DO BARÃO FORRESTER NÃO FOI TÃO LENDÁRIA QUANTO SE CONTA?
SABIA QUE… A MORTE DO BARÃO FORRESTER NÃO FOI TÃO LENDÁRIA QUANTO SE CONTA?
Revisitamos algumas edições de O TRIPEIRO dos últimos anos, a centenária revista da Associação Comercial do Porto que é guardiã da história e do património da cidade desde 1908. Neste caso, espreitamos a edição de NOVEMBRO de 2017.
Pode adquirir as edições mensais da revista O TRIPEIRO nos serviços do Palácio da Bolsa através dos contactos disponíveis na página de Facebook da Associação Comercial do Porto.
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Uma tragédia no Douro envolta em várias lendas
A morte do Barão Forrester
Em 1861 desaparecia, tragado pelas águas do Douro, uma das mais marcantes figuras da história dos vinhos durienses: o britânico Joseph James Forrester, ao qual o nosso rei Fernando II concedera o título de barão – o Barão Forrester. A sua trágica morte, num dos mais perigosos locais do rio, ficará envolvida em várias lendas. Em muitos aspetos totalmente descabidas, como acontece com todas estas “estórias”. Mas também alicerçadas num fundo histórico e verdadeiro, como é igualmente característico destas narrativas tradicionais que fazem parte do nosso Património Imaterial.
Dia 12 de maio de 1861. Rio Douro. Entre a Quinta do Vesúvio e a Régua, à entrada do colossal Cachão da Valeira.
Depois de dois dias de intensa chuva, este domingo amanhecera agradável e, com o passar das horas, ganhara força a proposta que surgira no grupo de um jantar na Régua. E por isso ali se encontravam todos, dezassete, a bordo do barco rabelo que ia descendo o rio. A uma velocidade crescentemente ameaçadora… a julgar pela apreensiva expressão que se vai desenhando no rosto de Joseph James Forrester.
Há já uma semana que o britânico se encontrava, a convite de Dona Antónia Adelaide Ferreira, a “Ferreirinha”, e do seu marido, o milionário Silva Torres, no Vesúvio – a fabulosa quinta que estes possuíam no Douro. E para Forrester, a quem o rei português Fernando II concedera o título de barão seis anos antes, era sempre um enorme prazer passar mais algum tempo nestas terras que o haviam atraído desde que, muito jovem, com vinte e dois anos, desembarcara no Porto em 1831, para trabalhar numa empresa exportadora de vinho do Porto que pertencia a um tio: a Offley, Forrester & Webber. De imediato se encantou pela cidade, pelo rio, pela região e pelas suas gentes. O seu apego foi de tal monta que quebrou até um pouco das “regras” da influente, mas também relativamente fechada, comunidade inglesa do Porto. Com efeito, não obstante ter casado em 1836 com uma britânica, Elisa Cramp, e de se empenhar de um modo muito significativo nos negócios do vinho, com deslocações a Londres e fortes ligações com os seus parceiros ingleses no Porto, Forrester desde cedo procurou aproximar-se também de um modo relevante dos portugueses, aprendendo a língua destes e tecendo relações próximas e de amizade com muitos deles. Na sua casa, na Ramada Alta, eram assíduas as visitas de negociantes, artistas, mas também políticos portugueses. E, sempre que podia e ao contrário do que era habitual entre os ingleses, viajava com imensa frequência para o Douro, não só para avaliar, mas também para acompanhar as colheitas, provar os vinhos, e assistir a muitas das outras fases de preparação dos vinhedos. Tornara-se, por isso, num dos mais prestigiados e conhecedores comerciantes do vinho do Porto.
Sim. Há já 30 anos que percorria estas escarpas, calcorreava estas margens e navegava neste rio. Muito poucos conheceriam o Douro tão bem quanto ele. E por isso mesmo, agora que se aproximavam a grande velocidade do Cachão da Valeira, o seu semblante denotava alguma preocupação. E não era para menos…
Ele sabia dos perigos que se avizinhavam. O seu profundo conhecimento do Douro não se limitava aos vinhos. Sempre que os trabalhos e os negócios permitiam um pouco mais de descanso, Forrester dedicava os seus tempos livres a atividades nas quais de um modo ou de outro o rio acabava por estar presente. Fosse nos seus desenhos e pinturas (e o inglês pintava muito e muito bem) ou, desde 1850, através de uma nova paixão: a fotografia. A morte da sua mulher, em 1847, viera adensar ainda mais as suas viagens para o Douro, transformado cada vez mais no seu refúgio. Aqui passará também a escrever (entre 1852 e 1860 publicará três edições de um ensaio intitulado “Portugal e as suas Capacidades”) e a prosseguir de um modo quase obstinado aquele que se converteu num dos grandes objetivos da sua vida e que, de resto, lhe valeu o título de barão por parte do monarca português: a produção de um minucioso levantamento cartográfico do vale do Douro. Entre os mapas que produziu, magnificamente ilustrados com desenhos bem reveladores das suas inegáveis capacidades artísticas, salientaram-se os monumentais “The Wine District Alto Douro” e o “The Portuguese Douro and the Adjacent Country”. Para a sua cuidada elaboração e para os rigorosos levantamentos cartográficos, Forrester não poupou na fortuna que vinha acumulando com os negócios do vinho. Mandou construir propositadamente um barco rabelo, caracterizado por uma luxuosa comodidade assegurada por um confortável dormitório, área de refeições e garrafeira. E, para manobrar a embarcação, contratou os mais hábeis e experimentados marinheiros do rio, pagando-lhes elevados salários. Com eles foi a todo o lado. Percorreu os mais profundos vales, subiu as mais altas elevações, obteve as cotas topográficas nos mais inacessíveis lugares, cartografou povoados, quintas e pequenos aglomerados isolados, registou todos os afluentes e mediu mais de 200 rápidos…Tornou-se, ainda mais, numa presença constante no Douro. Conhecido e reconhecido por todos. Conhecedor, como muito poucos, do rio e dos seus segredos.
E por isso mesmo estava agora com algum receio. Apesar do dia limpo e convidativo para o passeio, a verdade é que as chuvadas dos dois últimos dias tinham feito engrossar o rio e a corrente apresentava-se rápida e caudalosa. Bem mais do que o Barão Forrester aconselharia, tendo em conta que se aproximavam daquele que ele cartografara como sendo um dos pontos mais difíceis e perigosos em todo o curso do Douro: o Cachão da Valeira. Uma impressionante garganta que o rio escavara durante milénios entre as altas e rochosas escarpas das margens. Um local que, desde sempre e até há poucas décadas, fora um local intransponível e, por isso, impeditivo da navegabilidade do rio. Com efeito o cachão não se limitava a um estrangulamento do Douro entre as abruptas margens e a um consequente aumento da velocidade e ferocidade das águas. Era muito mais do que isso. Neste local o rio precipitava-se numa queda com sete metros de altura!…
Desde o século XVI, no entanto, que o Homem vinha procurando domar o cachão. Os trabalhos e estudos foram-se arrastando, sem grande sucesso, ao longo do século seguinte e na primeira metade do XVIII. Mas foi só com a autorização dada pela rainha Maria I, em 1779, à Companhia Geral da Agricultura e Vinhas do Alto Douro para cobrar um significativo conjunto de impostos que viabilizassem tais obras, que estas arrancaram de um modo contínuo e decisivo no ano seguinte, sob a direção do padre António Manuel Camelo de São João da Pesqueira, com o auxílio vital de José Maria Yola, um engenheiro hidráulico proveniente da Sardenha. Doze anos depois e após mais de quatro mil e trezentos tiros de explosivos abaixo da linha de água, em 1792 as obras eram dadas por concluídas. O leito do rio fora alargado de um modo significativo e a queda de água desaparecera. Mas o Cachão da Valeira estava longe de ser um suave canal. Os barcos podiam agora subir e descer o rio, mas o percurso, repleto de rápidos, era perigoso e obrigava a grande perícia por parte dos tripulantes das embarcações que por aqui passavam.
Conhecedor profundo do local, Forrester estava bem ciente do perigo que espreitava. E este inusitado volume de águas preocupava-o ainda mais. E, enquanto observava o rosto e o comportamento dos restantes companheiros de viagem, todos aparentemente inconscientes dos riscos que se avizinhavam, tateou no interior dos bolsos das calças os volumosos e pesados sacos de moedas com que sempre viajava. Daria por bem empregue se tivesse, agora, a possibilidade de com essas moedas contratar alguns dos experientes marinheiros que com ele costumavam viajar. Estes, ao serviço da “Ferreirinha”, eram-lhe desconhecidos… Voltou a contemplá-los e aos restantes passageiros. Seguiam dezassete pessoas a bordo. Além do Barão, e do casal que o convidara, marcavam também presença a filha e o genro destes, condes da Azambuja, o juiz Aragão Mascarenhas, e muita criadagem, incluindo a afamada cozinheira Gertrudes Engrácia que trabalhara muitos anos no “Hotel Estanislau”, na Praça da Batalha, mas que Forrester havia entretanto contratado e que o acompanhara nesta incursão ao Vesúvio.
Mas eis que se aproximam momentos decisivos. A embarcação tomada por uma crescente velocidade entra no cachão e, de imediato, uma forte e diabólica corrente parece querer tomar conta do rabelo. Os marinheiros contrariam a força das águas e teimam em levar o barco por paragens mais serenas e seguras. O confronto entre a força e a destreza dos homens e o indomável ímpeto do rio revelar-se-á fatal já que o barco acaba por estalar num pavoroso gemido que se perde entre o rugido das águas. É o pânico entre todos os que se encontram a bordo. Um pânico de curta duração, já que que acto contínuo o rabelo se abre a meio e de imediato é tragado pelos rápidos. Entre gritos, sufocos, gestos aflitos, atos de bravura e acasos fortuitos de sorte e azar, grande parte dos náufragos sobreviverá. Como é o caso de Dona Antónia, que miraculosamente não se afoga por artes, que parecem mágicas, das suas longas saias que, abertas, funcionaram como boias e a mantiveram sempre à tona da água fazendo-a navegar em segurança até às margens.
A mesma sorte não teve o Barão Forrester. Confiante nos seus dotes de nadador e preocupado em não perder os seus pesados sacos de moedas agarrados às calças, foi por estes arrastado para o fundo do rio. Sem salvação possível. Tinha 52 anos e o seu corpo nunca apareceu.
Da lenda à realidade
Embora os factos narrados nos parágrafos anteriores sejam verídicos na sua generalidade, há neles, contudo, dois pormenores que não correspondem à verdade. Com efeito, o trágico naufrágio no cachão da Valeira acabou, com o passar dos tempos, por se ver revestido de alguma(s) lenda(s) que muitos acreditam, nos nossos dias, ter sido verdade. É o caso das circunstâncias do salvamento da “Ferreirinha” (supostamente graças às suas saias “flutuantes”) e da morte do Barão Forrester (puxado para o fundo do rio devido à sua “avareza” e apego aos sacos de moedas de que não se quis libertar). Tal, contudo, não corresponde à verdade, como nos assegura uma descrição contemporânea e algo pormenorizada do que aconteceu, narrada pela pena de Camilo Castelo Branco em “O Vinho do Porto”. Trata-se, aliás, de uma versão insuspeita, tendo em conta o facto de o escritor não gostar de Forrester: “O barão sofrera a pancada do mastro quando se lançava à corrente, nadando. Ainda fez algum esforço por apegar à margem; mas, fatigado de bracejar no teso da corrente ou aturdido pelo golpe, estrebuchou alguns segundos de agonia e desapareceu. Salvaram-se os outros, não todos, com a protecção de uns barcos que aí estavam para recolher o despojo de outro naufrágio de um transporte de cereais. Livrou-se Torres, o futuro par do reino, agarrado a um barril de azeite, até que o recolheram a um dos barcos. Dona Antónia e o conde de Azambuja aferraram-se às dragas do barco. A condessa foi salva por um marinheiro. Um juiz de direito, Aragão Mascarenhas, agarrou-se à vara do barco rijamente, qual o temos sempre visto filado à vara da Justiça, em naufrágio de trapaças. Mas nem todos saíram com vida. Um criado de Torres foi logo tragado pela cachoeira (…)” e, provando que afinal a versão de Camilo não é totalmente insuspeita e imparcial, o escritor acaba por revelar aquela que na sua opinião foi a mais importante vítima desta tragédia: “(…) abraçada com a vela, já quando se lhe estendia um braço redentor, afogou-se uma criatura a quem os noticiaristas não deram a mínima importância. Pois foi uma perda insubstituível. Era a Gertrudes, um tesouro de jóias culinárias que a voragem engoliu….”.
Menos divulgada, mas igualmente lendária, é a versão que afiança que o Barão acabou por morrer porque Silva Torres, o marido da “Ferreirinha”, fez questão de não o socorrer. Tudo porque, dizia-se, Forrester “tinha um caso” com Dona Antónia.
Adensando toda a tragédia e o mistério à volta da morte do Barão acresce ainda a circunstância de existir no cemitério inglês do Porto, no Largo da Maternidade, a campa de Joseph James Forrester, falecido no Cachão da Valeira. Uma sepultura que, diz alguma tradição, foi mandada erguer pela comunidade britânica na esperança de que o corpo do malogrado negociante fosse, entretanto, resgatado. Uma campa vazia, já que o Douro nunca o devolveu, como que fazendo questão de guardar para si aquele que foi um dos seus mais relevantes apaixonados. Mas, mais uma vez, estamos perante uma lenda. De facto a campa existe, mas também é verdade que já existia antes da sua morte. O Barão, que fez questão de registar em desenho essa área do cemitério (ver gravura que acompanha este artigo), tinha salvaguardado para si esse espaço sepulcral, por forma a que o seu descanso final fosse ao lado da sepultura da sua esposa e da sua filha. E em rigor a campa não se encontra vazia, já que nela foi posteriormente enterrado o seu filho.
Mais de um século e meio depois da trágica morte do Barão Forrester a sua memória continua viva entre as gentes do Porto e do Douro. E, no Cachão da Valeira, hoje em dia um espaço navegável em total segurança, após a construção da barragem da Valeira, inaugurada em 1975, diz-se que por vezes, especialmente à noite, se escutam enigmáticos ruídos e se sentem estranhos arrepios. Há quem afiance que são as almas penadas de muitos dos que aqui perderam as suas vidas e cujos corpos nunca foram encontrados. Como o de Forrester.
E a lenda continua…
Texto de Joel Cleto