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SABIA QUE… NA VELHA PRAIA DE MIRAGAIA APARELHARAM-SE EMBARCAÇÕES DA EXPEDIÇÃO A CEUTA DE 1415?

SABIA QUE… NA VELHA PRAIA DE MIRAGAIA APARELHARAM-SE EMBARCAÇÕES DA EXPEDIÇÃO A CEUTA DE 1415?

 

Revisitamos algumas edições de O TRIPEIRO dos últimos anos, a centenária revista da Associação Comercial do Porto que é guardiã da história e do património da cidade desde 1908. Neste caso, espreitamos a edição de outubro de 2009.

 

Pode adquirir as edições mensais da revista O TRIPEIRO nos serviços do Palácio da Bolsa através dos contactos disponíveis na página de Facebook da Associação Comercial do Porto.

 

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A construção da Alfândega Nova, há 150 anos, fez desaparecer o que restava do antigo areal e dos estaleiros na praia de Miragaia. O desejo de uma cidade moderna levou à redefinição do contacto entre a cidade e o rio, conduzindo não só à construção da Alfândega Nova, mas a um grandioso projecto de ordenamento urbano com a construção da Rua Nova da Alfândega que, partindo da Ribeira, se prolongaria por Miragaia até Monchique.

 

“As vistas gerais da Cidade do Porto, dos finais do século XVIII, permitem observar a organização estratégica do espaço urbano, fornecendo informações preciosas para o estudo das paisagens do Porto já desaparecidas ou então totalmente modificadas durante o século XIX.

É particularmente rica a vista panorâmica de Manoel de Marques Aguilar de 1791, a qual, abstraindo os grandes edifícios de construção dos finais de setecentos, dá preciosas informações sobre a paisagem urbana de tradição medieval. Aqui podemos observar o traçado ainda intacto da muralha do século XIV, cuja linha dos muros defensivos marginava o rio Douro desde as praias de Miragaia até aos Guindais, como também a implantação do casario, as manchas de espaços verdes, as penedias e outros acidentes de terreno. Particularmente evidente é a tradicional relação da cidade com o rio e o mar, através do primitivo cais, das portas secundárias de muralha e do areal de Miragaia, os acessos terrestres periféricos e a torre que substituiu o antigo pinheiro da Marca, para orientação dos navios à entrada na barra do Douro. A localização do burgo portuense, em posição sobranceira ao rio Douro, e relativamente próximo da sua foz, proporcionou especial incidência do comércio fluvial e marítimo na sua vida económica, testemunho da azáfama ribeirinha e o trabalho no cais da Estiva ou cais da descarga na Alfândega Velha.

Os primitivos estaleiros da cidade deviam estar localizados num pequeno areal que outrora existia entre o Rio da Vila e a Alfândega Velha, instalada junto à margem do Douro, no actual edifício do Arquivo Histórico Municipal do Porto. Este edifício tem origem na antiga alfândega régia e posterior Casa da Moeda, construída no século XIV. Em 1894 foi descerrada a lápide comemorativa do nascimento do Infante D. Henrique, passando a Monumento Nacional, denominando-se a partir de então Casa do Infante. A primitiva Alfândega de 1325 foi determinante para a organização urbana da zona ribeirinha, não apenas pelo aparecimento de importantes edifícios administrativos, mas também pela atracção que exerceu na burguesia mercantil.

Com a construção da muralha fernandina, a fábrica de navios teve de se transferir para Miragaia e Vila Nova. As praias de Miragaia, onde o Rio Frio lança as suas águas no Douro, eram então suficientemente amplas para receber uma tal estrutura, a qual, segundo o testemunho do cronista Fernão Lopes, depressa se veio a tornar no mais importante estaleiro naval do país. O terreno era frequentemente submerso pelas águas do rio Douro e, no caso de haver cheias, a inundação era inevitável. Além dos armazéns das “taracenas” e estacarias de suporte, havia uma fossa para reparação das naus.

No século XV, a propriedade do extenso areal pertencia à Confraria de S. Pedro de Miragaia, confirmando a presença de uma fervorosa população de mareantes dedicados às actividades de pesca fluvial e ao comércio marítimo, incluindo uma população imigrante de Judeus e Arménios. Na Calçada da Esperança ficava a Cordoaria Velha, justificada pela proximidade do estaleiro e produção das amarras das embarcações. Em Miragaia prepararam-se muitas das embarcações que fizeram parte da expedição a Ceuta em 1415 e, nos finais do século XV, já se construíam naus para a carreira da Índia. As funções destes estaleiros foram transferidas na época moderna para a ribeira do Ouro, onde se passaram a fabricar os grandes galeões. Ainda num passado recente, as gentes da baixa de Miragaia denominaram o largo que forma a Rua de Miragaia como o “Largo da Praia”.

Já no século XIX, a construção da Alfândega Nova, a partir de 1859, fez desaparecer o que restava do antigo areal e dos estaleiros na Praia de Miragaia. O desejo de uma cidade moderna levou à redefinição do contacto entre a cidade e o rio, conduzindo não só à construção da Alfândega Nova, mas a um grandioso projecto de ordenamento urbano com a construção da Rua Nova da Alfândega que, partindo da Ribeira, se prolongaria por Miragaia até Monchique, apeando-se inevitavelmente as muralhas de tradição medieval do passado, mas assumindo desde então uma imagem de progresso em toda a cidade, contribuindo para a modificação radical operada na arquitectura e urbanização portuense da época.

A paisagem urbana portuense foi, desde sempre, feita de pequenos lugares que o tempo foi unindo, esbatendo inevitavelmente os antigos contornos das marcas e sentidos da multissecular paisagem cultural da nossa cidade.”

 

(Texto de António Manuel Passos Almeida, Mestre em Museologia. Departamento Municipal de Museus e Património Cultural, Câmara Municipal do Porto)