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SABIA QUE… A ORIGEM DE RIO TINTO NADA TEM A VER, AFINAL, COM BATALHA DO SÉC. X?
SABIA QUE… A ORIGEM DE RIO TINTO NADA TEM A VER, AFINAL, COM BATALHA DO SÉC. X?
Revisitamos algumas edições de O TRIPEIRO dos últimos anos, a centenária revista da Associação Comercial do Porto que é guardiã da história e do património da cidade desde 1908. Neste caso, espreitamos a edição de abril de 2010.
Pode adquirir as edições mensais da revista O TRIPEIRO nos serviços do Palácio da Bolsa através dos contactos disponíveis na página de Facebook da Associação Comercial do Porto.
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Lendas do Porto
Mouros, cristãos e…Rio Tinto
Um dos mais lendários confrontos entre mouros e cristãos, na região do Porto, teve lugar, segundo a tradição, no ano 920 e colocou frente a frente o rei mouro Abd al Rahaman III e o conde portucalense Hermenegildo Guterres. O desfecho da batalha resultaria, entre outros, no aparecimento de Rio Tinto.
O ano é o de 920. Abd al Rahamn III, emir de Córdova, à frente de um poderoso exército muçulmano avança em direcção a Portucale – assim se designava então o Porto. Independentemente de outros objectivos, tal incursão procurava, por parte dos mouros, corrigir uma afronta perpetrada, anos antes, em 868, pelos cristãos. Nesse ano um grupo de cavaleiros, chefiados por Vímara Peres, havia tomado a cidade do Porto e declarado que a mesma passava a ficar sob o domínio do rei cristão das Astúrias. É certo que haviam decorrido já longos anos e há muito que Vímara Peres havia morrido. Mas Abd al Rahamn, ao mesmo tempo que queria recuperar para o domínio árabe estas áreas mais setentrionais da Península Ibérica, estava também empenhado em ajustar contas com os senhores cristãos do Porto. Até porque quem, desde 895, governava a cidade era o conde de Tui e Portucale, Hermenegildo Guterres, personalidade definitivamente não grata aos muçulmanos já que fora também ele o responsável, em 878, pela reconquista cristã de Coimbra, na sequência da qual outras importantes cidades a sul do Douro, como Viseu e Lamego, foram também “repovoadas” e passaram para a influência de Afonso III das Astúrias – período que correspondeu, de resto, ao apogeu deste reino.
O avanço das tropas muçulmanas foi célere e Abd al Rahamn III estava confiante que, de um modo muito rápido, iria tomar o Porto. É certo que o génio e a bravura militar de Hermenegildo poderiam colocar alguns entraves, mas a superioridade e motivação do seu exército eram tão significativos que, nem por um momento, colocou em causa o seu triunfo sobre a hipotética resistência da cidade e dos cristãos que aí habitavam. Hipotética, sim. Porque a bravura, a fama e o número dos árabes era de tal forma evidente que poderia muito bem acontecer que o Porto se rendesse e se entregasse ao seu domínio sem que fosse necessária qualquer refrega. Enganou-se. Redondamente.
Com efeito, apesar da sua já avançada idade, que se acercava dos oitenta anos, Hermenegildo e a cidade enfrentaram e resistiram aos mouros de um modo tenaz e decidido. Um após outro, os sucessivos ataques foram sendo rechaçados e o povoado, no alto do morro da Pena Ventosa e cercado a meia encosta por antiquíssimos muros, continuava a arvorar o pavilhão cristão. Perante esta aguerrida defesa o emir de Córdova planeou então uma outra estratégia: enveredar pelo cerco, prolongado se necessário, impedindo o abastecimento à cidade e esperando que a fome acabasse por obrigar à rendição de Hermenegildo. Ao fim de algumas semanas, contudo, percebeu que não seria assim tão fácil. Dentro dos muros do velho burgo havia várias fontes de água e também não rareavam as hortas por onde pululavam galinhas, frangos e porcos. O Porto tinha condições para suportar o cerco durante muito tempo. Passou por isso novamente aos ataques e a sucessivas incursões junto das muralhas da cidade procurando penetrar através delas. Sempre em vão. Os cristãos resistiam estoicamente.
Haviam decorrido já várias semanas e os mouros perceberam que o tempo jogava contra eles. O mais natural, e até esperado, é que, na sequência desta sua importante incursão e das sucessivas conquistas de povoações que haviam realizado, houvesse uma reacção dos líderes cristãos dos reinos e condados localizados mais a norte, das Astúrias, Galiza e Leão, e que estes enviassem as suas tropas na tentativa de aplacar a avançada muçulmana. Uma avançada que, no entanto, teimava em ser retida pela resistência do Porto.
Não se enganava Abd al Rahamn. Com efeito, o rei Ordonho II, à frente de um exército também ele numeroso, avançava ao seu enconcontro. Perante tal notícia o comandante árabe entendeu que, definitivamente, lhe era fundamental e estratégico conquistar a cidade. Tal representaria não só um reforço para a auto-estima e motivação dos seus homens, mas asseguraria de igual modo a conquista de uma praça forte a partir da qual poderia retemperar e reorganizar o seu exército e, se necessário, resistir a um primeiro embate com o rei cristão.
Avançou, por isso, em simultâneo e em força, com todos os seus homens, sobre o Porto. Do alto das muralhas o velho Hermenegildo Guterres viu aproximar-se a horda muçulmana. Gritando, gesticulando, correndo de um lado para o outro ao longo dos adarves, espreitando permanentemente o posicionamento do inimigo por entre as ameias, o velho conde cristão dirigia a resistência dos sitiados. As suas instruções eram fundamentais. E o seu exemplo de bravura e tenacidade uma inspiração e modelo para os habitantes do burgo. Nenhuma das escadas lançadas pelos mouros sobre os muros da cidade atingiu o desiderato por estes planeado. Nem um único árabe conseguiu alcandorar-se ao nível das ameias. Também as portas da cidade resistiram, um após outro, aos sucessivos ataques e furiosas investidas dos sarracenos. Uma delas acabaria mesmo por quebrar sobre o ímpeto dos aríetes mouros. Mas nem um único conseguiu penetrar para lá da ombreira. Percebendo que aquele se tornara num ponto frágil na acção defensiva da cidade, Hermenegildo Guterres rapidamente convocara para aí o maior número possível de homens e, consigo à frente dos mesmos, não só rechaçou o ataque como, quando tomou consciência disso, se encontrava bem no exterior das muralhas perseguindo os mouros que se encontravam em fuga. Em fuga, sim… É que, entretanto, no horizonte, surgira o numeroso exército de Ordonho II e Abd al Rahamn de imediato deu instruções aos seus homens para uma rápida e ardilosa retirada. Havia que redefinir a estratégia e preparar-se para o embate com as numerosas forças cristãs que agora chegavam.
O combate era inevitável. E era, afinal, para isso mesmo que ali se encontravam. Gorada a tentativa, por parte dos mouros, de tomar a cidade do Porto, a batalha teria agora que ter lugar em terreno amplo, a céu aberto. E, tendo as forças sarracenas retirado para nascente do burgo, o espaço surgiu naturalmente: localizava-se a dois ou três quilómetros a leste do povoado e era um extenso vale que, cruzado por um pequeno ribeiro, descia de um modo suave em direcção ao Douro.
Os dois exércitos, numerosos, posicionaram-se nas extremidades do vale. Há muito que não se assistia a uma contenda entre mouros e cristãos envolvendo tamanhos efectivos. Adivinhava-se um longo e sangrento confronto. E foi isso mesmo que aconteceu. Não houve avanços nem recuos. As duas multidões de guerreiros pura e simplesmente dirigiram-se uma em direcção à outra e mesclaram-se num tenebroso cenário de morte, entre um ruído ensurdecedor de gritos de dor, de espadas cruzadas, impropérios de todo o tipo, silvar de lanças e flechas, rezas e orações, machados contra elmos e couraças, longos suspiros de expiação de morte… Durante longas horas a batalha foi travada, não sendo possível discernir um lado ou outro. Apenas um gigantesco amontoado de guerreiros que se matavam, sem que nenhuma das facções mostrasse vontade de fugir. Todos pareciam estar dispostos a lutar até ao último dos seus homens. Os corpos avolumavam-se e o sangue tingia de vermelho a terra e o pequeno ribeiro.
Finalmente, e quando o número de efectivos era já bastante reduzido, o emir de Córdova deu ordem de retirada aos homens que lhe restavam. Não lhe valia já a pena prosseguir a batalha. Mesmo que vencesse este sangrento confronto, tal seria uma vitória de Pirro já que não teria, depois, soldados suficientes para assegurar o seu domínio sobre os territórios que conquistara durante as últimas semanas. Recuou, pois. Debaixo dos gritos vitoriosos dos homens de Ordonho II e dos guerreiros portuenses comandados por Hermenegildo Guterres. O balanço, no entanto, era trágico. Sobre o campo de batalha milhares de mortos continuavam a impregnar o ribeiro de sangue, num fenómeno que duraria ainda durante os dias seguintes. Um acontecimento de tal forma marcante que fez com que, desde então, este curso de água se passasse a designar por… Rio Tinto.
Da lenda à realidade
Embora as personagens e muitos dos factos narrados nesta lenda façam, de facto, parte da História, a verdade é que esta lendária batalha nunca se travou. Pelo menos no ano 920 ou, muito menos ainda, noutras datas posteriores tradicionalmente apontadas para este confronto, como é o caso de 959. Não só pelo facto de sabermos que 920 é o ano da morte de Hermenegildo, mas também porque foi nesse mesmo ano que, de facto se travou um violento confronto entre as tropas de Ordonho II e as de Abd al Rahman. Só que, historicamente, foi exactamente o contrário que se passou: o exército cristão é que progrediu para Sul, tendo sido derrotado pelas forças islâmicas na batalha de Valdejunquera.
Quanto à origem do topónimo de Rio Tinto, este encontra-se muito provavelmente relacionado com fenómenos geológicos e pedológicos naturais. Isso mesmo desconfiava, já em 1875, Simão Rodrigues Ferreira ao afirmar na sua obra “Antiguidades do Porto” que o rio teria este nome “devido a circunstâncias peculiares, inerentes à natureza do solo”. Talvez, acrescenta em 1938 Camilo de Oliveira, na sua magnífica monografia “O Concelho de Gondomar”, “por correr por um terreno devoniano, onde abunda o grés vermelho que ainda hoje aflora ali pelos caminhos”.
(texto de Joel Cleto, arqueólogo)